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sábado, 18 de abril de 2015

III Domingo Páscoa B


Evangelho segundo S. Lucas 24, 35-48
Naquele tempo, os discípulos de Emaús contaram o que tinha acontecido no caminho e como tinham reconhecido Jesus ao partir do pão. Enquanto diziam isto, Jesus apresentou-Se no meio deles e disse-lhes: «A paz esteja convosco». Espantados e cheios de medo, julgavam ver um espírito. Disse-lhes Jesus: «Porque estais perturbados e porque se levantam esses pensamentos nos vossos corações? Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo; tocai-Me e vede: um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que Eu tenho». Dito isto, mostrou-lhes as mãos e os pés. E como eles, na sua alegria e admiração, não queriam ainda acreditar, perguntou-lhes: «Tendes aí alguma coisa para comer?». Deram-Lhe uma posta de peixe assado, que Ele tomou e começou a comer diante deles. Depois disse-lhes: «Foram estas as palavras que vos dirigi, quando ainda estava convosco: ‘Tem de se cumprir tudo o que está escrito a meu respeito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos’». Abriu-lhes então o entendimento para compreenderem as Escrituras e disse-lhes: «Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e de ressuscitar dos mortos ao terceiro dia, e que havia de ser pregado em seu nome o arrependimento e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sois as testemunhas de todas estas coisas».

Caros amigos e amigas, este texto é atravessado por dúvidas reiteradas, onde revemos as nossas dúvidas, mas repleto da paciente pedagogia do Mestre. A credibilidade das testemunhas precisa de uma sólida base de fé.

Interpelações da Palavra
Os testemunhos preparam as testemunhas
A avaliar pela descrição, imaginamos que o ardor dos dois que vinham de Emaús caiu num gelo de cepticismo. No entanto aquele rastilho que eles deixaram talvez tivesse sido precioso para atear a chama que depois o próprio ressuscitado lhes acendeu. O texto situa-nos perante um modelo de crescimento na fé, desde o primeiro anúncio até à experiência do ressuscitado, que culmina num envio em missão.
A fé não é um voluntarismo superficial, que acode e cola por um “ouvir dizer”… mas, de facto, o “ouvir dizer” pode ser o primeiro passo de uma grande peregrinação de amor. Sim, muitos precisam de “ouvir dizer”, para se aproximarem, precisam de “ouvir dizer” para acordarem e se moverem, mas para se tornar discípulo é preciso experimentar por si próprio o encontro, dar o mergulho nas chagas do ressuscitado, senti-l’O vivo, para aderir a Ele. A experiência de fé exige uma resposta individual, mas situa-se num contexto relacional, inseparável da Igreja. Mesmo as aparições individuais culminam com um envio à comunidade: “Ide dizer”!

Sou Eu
Palavra bálsamo, fórmula da intimidade e da reciprocidade que anuncia uma presença cúmplice, capaz de acalmar os ânimos perturbados. Afinal o Ressuscitado não é uma figura distante, misteriosa ou intocável… mas é o Amigo, o Pai, o Irmão, o Esposo… agora portador da Vida Nova que continua a manter aquela ternura familiar que é própria aos de casa, aos do coração. Ele conserva o toque da proximidade, que conhece e é conhecido... Na expressão “Sou Eu” descubro aquele convite à reciprocidade na relação, a uma disponibilidade irresistível de presença, que pode calar o meu vazio, descubro aquela carícia onde posso drenar as tormentas, aquele manancial onde posso sempre haurir a minha alegria. Só o Ressuscitado tem poder de me ressuscitar.

Vós sois as testemunhas
Jesus abre o nosso entendimento. É como quando abre o pão, na refeição da Páscoa e o reparte. Ele fecunda-nos o entendimento e consagra-o. Então o nosso entendimento pode tornar-se eucaristia repartida, pode fazer-se alimento, para quantos morrem à míngua de notícias ressuscitadoras. Este relato vem imediatamente na sequência do belíssimo episódio dos discípulos de Emaús, um episódio eminentemente eucarístico. É Ele que ilumina as Escrituras, para que logo O reconheçamos quando Ele parte e reparte o Pão! E ao reconhecê-l’O nós não conseguimos deixar de nos tornar testemunhas. Amigos e amigas, nós somos daqueles que “vimos”, “ouvimos” e “tocámos”. Nós, homens e mulheres viventes na paz do ressuscitado, não podemos calar “estas coisas” em palavras e obras. Somos portadores da beleza e do fascínio, da sempre boa notícia do Evangelho!

Rezar a Palavra e contemplar o Mistério
Senhor Jesus, surpresa que rompe as fronteiras dos meus porquês,
Ensina-me a Tua presença ressuscitada em cada sinal de comunhão,
Ajuda-me a escancarar as portas que me isolam e me afastam da missão,
Ilumina os meus segredos com a novidade e a alegria do Teu Espírito de Paz,
Sacia a minha fome de felicidade em cada milagre do “partir do pão”.
Quero sentar-me à Tua mesa, fazer parte do banquete dos ressuscitados!

Viver a Palavra

Vou ser testemunha e artífice de gestos de paz.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial da Paz 2015


JÁ NÃO ESCRAVOS, MAS IRMÃOS

1. No início dum novo ano, que acolhemos como uma graça e um dom de Deus para a humanidade, desejo dirigir, a cada homem e mulher, bem como a todos os povos e nações do mundo, aos chefes de Estado e de Governo e aos responsáveis das várias religiões, os meus ardentes votos de paz, que acompanho com a minha oração a fim de que cessem as guerras, os conflitos e os inúmeros sofrimentos provocados quer pela mão do homem quer por velhas e novas epidemias e pelos efeitos devastadores das calamidades naturais. Rezo de modo particular para que, respondendo à nossa vocação comum de colaborar com Deus e com todas as pessoas de boa vontade para a promoção da concórdia e da paz no mundo, saibamos resistir à tentação de nos comportarmos de forma não digna da nossa humanidade.
Já, na minha mensagem para o 1º de Janeiro passado, fazia notar que «o anseio duma vida plena (…) contém uma aspiração irreprimível de fraternidade, impelindo à comunhão com os outros, em quem não encontramos inimigos ou concorrentes, mas irmãos que devemos acolher e abraçar».[1] Sendo o homem um ser relacional, destinado a realizar-se no contexto de relações interpessoais inspiradas pela justiça e a caridade, é fundamental para o seu desenvolvimento que sejam reconhecidas e respeitadas a sua dignidade, liberdade e autonomia. Infelizmente, o flagelo generalizado da exploração do homem pelo homem fere gravemente a vida de comunhão e a vocação a tecer relações interpessoais marcadas pelo respeito, a justiça e a caridade. Tal fenómeno abominável, que leva a espezinhar os direitos fundamentais do outro e a aniquilar a sua liberdade e dignidade, assume múltiplas formas sobre as quais desejo deter-me, brevemente, para que, à luz da Palavra de Deus, possamos considerar todos os homens, «já não escravos, mas irmãos».

À escuta do projecto de Deus para a humanidade
2. O tema, que escolhi para esta mensagem, inspira-se na Carta de São Paulo a Filémon; nela, o Apóstolo pede ao seu colaborador para acolher Onésimo, que antes era escravo do próprio Filémon mas agora tornou-se cristão, merecendo por isso mesmo, segundo Paulo, ser considerado um irmão. Escreve o Apóstolo dos gentios: «Ele foi afastado por breve tempo, a fim de que o recebas para sempre, não já como escravo, mas muito mais do que um escravo, como irmão querido» (Flm 15-16). Tornando-se cristão, Onésimo passou a ser irmão de Filémon. Deste modo, a conversão a Cristo, o início duma vida de discipulado em Cristo constitui um novo nascimento (cf. 2 Cor 5, 17; 1 Ped 1, 3), que regenera a fraternidade como vínculo fundante da vida familiar e alicerce da vida social.
Lemos, no livro do Génesis (cf. 1, 27-28), que Deus criou o ser humano como homem e mulher e abençoou-os para que crescessem e se multiplicassem: a Adão e Eva, fê-los pais, que, no cumprimento da bênção de Deus para ser fecundos e multiplicar-se, geraram a primeira fraternidade: a de Caim e Abel. Saídos do mesmo ventre, Caim e Abel são irmãos e, por isso, têm a mesma origem, natureza e dignidade de seus pais, criados à imagem e semelhança de Deus.
Mas, apesar de os irmãos estarem ligados por nascimento e possuírem a mesma natureza e a mesma dignidade, a fraternidadeexprime também a multiplicidade e a diferença que existe entre eles. Por conseguinte, como irmãos e irmãs, todas as pessoas estão, por natureza, relacionadas umas com as outras, cada qual com a própria especificidade e todas partilhando a mesma origem, natureza e dignidade. Em virtude disso, a fraternidade constitui a rede de relações fundamentais para a construção da família humana criada por Deus.
Infelizmente, entre a primeira criação narrada no livro do Génesis e o novo nascimento em Cristo – que torna, os crentes, irmãos e irmãs do «primogénito de muitos irmãos» (Rom 8, 29) –, existe a realidade negativa do pecado, que interrompe tantas vezes a nossa fraternidade de criaturas e deforma continuamente a beleza e nobreza de sermos irmãos e irmãs da mesma família humana. Caim não só não suporta o seu irmão Abel, mas mata-o por inveja, cometendo o primeiro fratricídio. «O assassinato de Abel por Caim atesta, tragicamente, a rejeição radical da vocação a ser irmãos. A sua história (cf. Gen 4, 1-16) põe em evidência o difícil dever, a que todos os homens são chamados, de viver juntos, cuidando uns dos outros».[2]
Também na história da família de Noé e seus filhos (cf. Gen 9, 18-27), é a falta de piedade de Cam para com seu pai, Noé, que impele este a amaldiçoar o filho irreverente e a abençoar os outros que o tinham honrado, dando assim lugar a uma desigualdade entre irmãos nascidos do mesmo ventre.
Na narração das origens da família humana, o pecado de afastamento de Deus, da figura do pai e do irmão torna-se uma expressão da recusa da comunhão e traduz-se na cultura da servidão (cf. Gen 9, 25-27), com as consequências daí resultantes que se prolongam de geração em geração: rejeição do outro, maus-tratos às pessoas, violação da dignidade e dos direitos fundamentais, institucionalização de desigualdades. Daqui se vê a necessidade duma conversão contínua à Aliança levada à perfeição pela oblação de Cristo na cruz, confiantes de que, «onde abundou o pecado, superabundou a graça (…) por Jesus Cristo» (Rom 5, 20.21). Ele, o Filho amado (cf. Mt 3, 17), veio para revelar o amor do Pai pela humanidade. Todo aquele que escuta o Evangelho e acolhe o seu apelo à conversão, torna-se, para Jesus, «irmão, irmã e mãe» (Mt 12, 50) e, consequentemente, filho adoptivo de seu Pai (cf. Ef 1, 5).
No entanto, os seres humanos não se tornam cristãos, filhos do Pai e irmãos em Cristo por imposição divina, isto é, sem o exercício da liberdade pessoal, sem se converterem livremente a Cristo. Ser filho de Deus requer que primeiro se abrace o imperativo da conversão: «Convertei-vos – dizia Pedro no dia de Pentecostes – e peça cada um o baptismo em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus pecados; recebereis, então, o dom do Espírito Santo» (Act 2, 38). Todos aqueles que responderam com a fé e a vida àquela pregação de Pedro, entraram na fraternidade da primeira comunidade cristã (cf. 1 Ped 2, 17; Act 1, 15.16; 6, 3; 15, 23): judeus e gregos, escravos e homens livres (cf. 1 Cor 12, 13; Gal 3, 28), cuja diversidade de origem e estado social não diminui a dignidade de cada um, nem exclui ninguém do povo de Deus. Por isso, a comunidade cristã é o lugar da comunhão vivida no amor entre os irmãos (cf. Rom 12, 10; 1 Tes 4, 9; Heb 13, 1; 1 Ped 1, 22; 2 Ped 1, 7).
Tudo isto prova como a Boa Nova de Jesus Cristo – por meio de Quem Deus «renova todas as coisas» (Ap 21, 5)[3] – é capaz de redimir também as relações entre os homens, incluindo a relação entre um escravo e o seu senhor, pondo em evidência aquilo que ambos têm em comum: a filiação adoptiva e o vínculo de fraternidade em Cristo. O próprio Jesus disse aos seus discípulos: «Já não vos chamo servos, visto que um servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai» (Jo 15, 15).

As múltiplas faces da escravatura, ontem e hoje
3. Desde tempos imemoriais, as diferentes sociedades humanas conhecem o fenómeno da sujeição do homem pelo homem. Houve períodos na história da humanidade em que a instituição da escravatura era geralmente admitida e regulamentada pelo direito. Este estabelecia quem nascia livre e quem, pelo contrário, nascia escravo, bem como as condições em que a pessoa, nascida livre, podia perder a sua liberdade ou recuperá-la. Por outras palavras, o próprio direito admitia que algumas pessoas podiam ou deviam ser consideradas propriedade de outra pessoa, a qual podia dispor livremente delas; o escravo podia ser vendido e comprado, cedido e adquirido como se fosse uma mercadoria qualquer.
Hoje, na sequência duma evolução positiva da consciência da humanidade, a escravatura – delito de lesa humanidade[4] – foi formalmente abolida no mundo. O direito de cada pessoa não ser mantida em estado de escravidão ou servidão foi reconhecido, no direito internacional, como norma inderrogável.
Mas, apesar de a comunidade internacional ter adoptado numerosos acordos para pôr termo à escravatura em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para combater este fenómeno, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura.
Penso em tantos trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a nível formal e informal, desde o trabalho doméstico ao trabalho agrícola, da indústria manufactureira à mineração, tanto nos países onde a legislação do trabalho não está conforme às normas e padrões mínimos internacionais, como – ainda que ilegalmente – naqueles cuja legislação protege o trabalhador.
Penso também nas condições de vida de muitos migrantes que, ao longo do seu trajecto dramático, padecem a fome, são privados da liberdade, despojados dos seus bens ou abusados física e sexualmente. Penso em tantos deles que, chegados ao destino depois duma viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança, ficam detidos em condições às vezes desumanas. Penso em tantos deles que diversas circunstâncias sociais, políticas e económicas impelem a passar à clandestinidade, e naqueles que, para permanecer na legalidade, aceitam viver e trabalhar em condições indignas, especialmente quando as legislações nacionais criam ou permitem uma dependência estrutural do trabalhador migrante em relação ao dador de trabalho como, por exemplo, condicionando a legalidade da estadia ao contrato de trabalho... Sim! Penso no «trabalho escravo».
Penso nas pessoas obrigadas a prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores, e nas escravas e escravos sexuais; nas mulheres forçadas a casar-se, quer as que são vendidas para casamento quer as que são deixadas em sucessão a um familiar por morte do marido, sem que tenham o direito de dar ou não o próprio consentimento.
Não posso deixar de pensar a quantos, menores e adultos, são objecto de tráfico e comercialização para remoção de órgãos, para ser recrutados como soldados, para servir de pedintes, para actividades ilegais como a produção ou venda de drogas, ou paraformas disfarçadas de adopção internacional.
Penso, enfim, em todos aqueles que são raptados e mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo os seus objectivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às meninas e mulheres, como escravas sexuais. Muitos deles desaparecem, alguns são vendidos várias vezes, torturados, mutilados ou mortos.

Algumas causas profundas da escravatura
4. Hoje como ontem, na raiz da escravatura, está uma concepção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um objecto. Quando o pecado corrompe o coração do homem e o afasta do seu Criador e dos seus semelhantes, estes deixam de ser sentidos como seres de igual dignidade, como irmãos e irmãs em humanidade, passando a ser vistos como objectos. Com a força, o engano, a coacção física ou psicológica, a pessoa humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade, mercantilizada, reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não como fim.
Juntamente com esta causa ontológica – a rejeição da humanidade no outro –, há outras causas que concorrem para se explicar as formas actuais de escravatura. Entre elas, penso em primeiro lugar na pobreza, no subdesenvolvimento e na exclusão, especialmente quando os três se aliam com a falta de acesso à educação ou com uma realidade caracterizada por escassas, se não mesmo inexistentes, oportunidades de emprego. Não raro, as vítimas de tráfico e servidão são pessoas que procuravam uma forma de sair da condição de pobreza extrema e, dando crédito a falsas promessas de trabalho, caíram nas mãos das redes criminosas que gerem o tráfico de seres humanos. Estas redes utilizam habilmente as tecnologias informáticas modernas para atrair jovens e adolescentes de todos os cantos do mundo.
Entre as causas da escravatura, deve ser incluída também a corrupção daqueles que, para enriquecer, estão dispostos a tudo. Na realidade, a servidão e o tráfico das pessoas humanas requerem uma cumplicidade que muitas vezes passa através da corrupção dos intermediários, de alguns membros das forças da polícia, de outros actores do Estado ou de variadas instituições, civis e militares. «Isto acontece quando, no centro de um sistema económico, está o deus dinheiro, e não o homem, a pessoa humana. Sim, no centro de cada sistema social ou económico, deve estar a pessoa, imagem de Deus, criada para que fosse o dominador do universo. Quando a pessoa é deslocada e chega o deus dinheiro, dá-se esta inversão de valores».[5]
Outras causas da escravidão são os conflitos armados, as violências, a criminalidade e o terrorismo. Há inúmeras pessoas raptadas para ser vendidas, recrutadas como combatentes ou exploradas sexualmente, enquanto outras se vêem obrigadas a emigrar, deixando tudo o que possuem: terra, casa, propriedades e mesmo os familiares. Estas últimas, impelidas a procurar uma alternativa a tão terríveis condições, mesmo à custa da própria dignidade e sobrevivência, arriscam-se assim a entrar naquele círculo vicioso que as torna presa da miséria, da corrupção e das suas consequências perniciosas.

Um compromisso comum para vencer a escravatura
5. Quando se observa o fenómeno do comércio de pessoas, do tráfico ilegal de migrantes e de outras faces conhecidas e desconhecidas da escravidão, fica-se frequentemente com a impressão de que o mesmo tem lugar no meio da indiferença geral.
Sem negar que isto seja, infelizmente, verdade em grande parte, apraz-me mencionar o enorme trabalho que muitas congregações religiosas, especialmente femininas, realizam silenciosamente, há tantos anos, a favor das vítimas. Tais institutos actuam em contextos difíceis, por vezes dominados pela violência, procurando quebrar as cadeias invisíveis que mantêm as vítimas presas aos seus traficantes e exploradores; cadeias, cujos elos são feitos não só de subtis mecanismos psicológicos que tornam as vítimas dependentes dos seus algozes, através de chantagem e ameaça a eles e aos seus entes queridos, mas também através de meios materiais, como a apreensão dos documentos de identidade e a violência física. A actividade das congregações religiosas está articulada a três níveis principais: o socorro às vítimas, a sua reabilitação sob o perfil psicológico e formativo e a sua reintegração na sociedade de destino ou de origem.
Este trabalho imenso, que requer coragem, paciência e perseverança, merece o aplauso da Igreja inteira e da sociedade. Naturalmente o aplauso, por si só, não basta para se pôr termo ao flagelo da exploração da pessoa humana. Faz falta também um tríplice empenho a nível institucional: prevenção, protecção das vítimas e acção judicial contra os responsáveis. Além disso, assim como as organizações criminosas usam redes globais para alcançar os seus objectivos, assim também a acção para vencer este fenómeno requer um esforço comum e igualmente global por parte dos diferentes actores que compõem a sociedade.
Os Estados deveriam vigiar por que as respectivas legislações nacionais sobre as migrações, o trabalho, as adopções, a transferência das empresas e a comercialização de produtos feitos por meio da exploração do trabalho sejam efectivamente respeitadoras da dignidade da pessoa. São necessárias leis justas, centradas na pessoa humana, que defendam os seus direitos fundamentais e, se violados, os recuperem reabilitando quem é vítima e assegurando a sua incolumidade, como são necessários também mecanismos eficazes de controle da correcta aplicação de tais normas, que não deixem espaço à corrupção e à impunidade. É preciso ainda que seja reconhecido o papel da mulher na sociedade, intervindo também no plano cultural e da comunicação para se obter os resultados esperados.
As organizações intergovernamentais são chamadas, no respeito pelo princípio da subsidiariedade, a implementar iniciativas coordenadas para combater as redes transnacionais do crime organizado que gerem o mercado de pessoas humanas e o tráfico ilegal dos migrantes. Torna-se necessária uma cooperação a vários níveis, que englobe as instituições nacionais e internacionais, bem como as organizações da sociedade civil e do mundo empresarial.
Com efeito, as empresas[6] têm o dever não só de garantir aos seus empregados condições de trabalho dignas e salários adequados, mas também de vigiar por que não tenham lugar, nas cadeias de distribuição, formas de servidão ou tráfico de pessoas humanas. A par da responsabilidade social da empresa, aparece depois a responsabilidade social do consumidor. Na realidade, cada pessoa deveria ter consciência de que «comprar é sempre um acto moral, para além de económico».[7]
As organizações da sociedade civil, por sua vez, têm o dever de sensibilizar e estimular as consciências sobre os passos necessários para combater e erradicar a cultura da servidão.
Nos últimos anos, a Santa Sé, acolhendo o grito de sofrimento das vítimas do tráfico e a voz das congregações religiosas que as acompanham rumo à libertação, multiplicou os apelos à comunidade internacional pedindo que os diversos actores unam os seus esforços e cooperem para acabar com este flagelo.[8] Além disso, foram organizados alguns encontros com a finalidade de dar visibilidade ao fenómeno do tráfico de pessoas e facilitar a colaboração entre os diferentes actores, incluindo peritos do mundo académico e das organizações internacionais, forças da polícia dos diferentes países de origem, trânsito e destino dos migrantes, e representantes dos grupos eclesiais comprometidos em favor das vítimas. Espero que este empenho continue e se reforce nos próximos anos.

Globalizar a fraternidade, não a escravidão nem a indiferença
6. Na sua actividade de «proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade»,[9] a Igreja não cessa de se empenhar em acções de carácter caritativo guiada pela verdade sobre o homem. Ela tem o dever de mostrar a todos o caminho da conversão, que induz a voltar os olhos para o próximo, a ver no outro – seja ele quem for – um irmão e uma irmã em humanidade, a reconhecer a sua dignidade intrínseca na verdade e na liberdade, como nos ensina a história de Josefina Bakhita, a Santa originária da região do Darfur, no Sudão. Raptada por traficantes de escravos e vendida a patrões desalmados desde a idade de nove anos, haveria de tornar-se, depois de dolorosas vicissitudes, «uma livre filha de Deus» mediante a fé vivida na consagração religiosa e no serviço aos outros, especialmente aos pequenos e fracos. Esta Santa, que viveu a cavalo entre os séculos XIX e XX, é também hoje testemunha exemplar de esperança[10] para as numerosas vítimas da escravatura e pode apoiar os esforços de quantos se dedicam à luta contra esta «ferida no corpo da humanidade contemporânea, uma chaga na carne de Cristo».[11]
Nesta perspectiva, desejo convidar cada um, segundo a respectiva missão e responsabilidades particulares, a realizar gestos de fraternidade a bem de quantos são mantidos em estado de servidão. Perguntemo-nos, enquanto comunidade e indivíduo, como nos sentimos interpelados quando, na vida quotidiana, nos encontramos ou lidamos com pessoas que poderiam ser vítimas do tráfico de seres humanos ou, quando temos de comprar, se escolhemos produtos que poderiam razoavelmente resultar da exploração de outras pessoas. Há alguns de nós que, por indiferença, porque distraídos com as preocupações diárias, ou por razões económicas, fecham os olhos. Outros, pelo contrário, optam por fazer algo de positivo, comprometendo-se nas associações da sociedade civil ou praticando no dia-a-dia pequenos gestos como dirigir uma palavra, trocar um cumprimento, dizer «bom dia» ou oferecer um sorriso; estes gestos, que têm imenso valor e não nos custam nada, podem dar esperança, abrir estradas, mudar a vida a uma pessoa que tacteia na invisibilidade e mudar também a nossa vida face a esta realidade.
Temos de reconhecer que estamos perante um fenómeno mundial que excede as competências de uma única comunidade ou nação. Para vencê-lo, é preciso uma mobilização de dimensões comparáveis às do próprio fenómeno. Por esta razão, lanço um veemente apelo a todos os homens e mulheres de boa vontade e a quantos, mesmo nos mais altos níveis das instituições, são testemunhas, de perto ou de longe, do flagelo da escravidão contemporânea, para que não se tornem cúmplices deste mal, não afastem o olhar à vista dos sofrimentos de seus irmãos e irmãs em humanidade, privados de liberdade e dignidade, mas tenham a coragem de tocar a carne sofredora de Cristo,[12] o Qual Se torna visível através dos rostos inumeráveis daqueles a quem Ele mesmo chama os «meus irmãos mais pequeninos» (Mt 25, 40.45).
Sabemos que Deus perguntará a cada um de nós: Que fizeste do teu irmão? (cf. Gen 4, 9-10). A globalização da indiferença, que hoje pesa sobre a vida de tantas irmãs e de tantos irmãos, requer de todos nós que nos façamos artífices duma globalização da solidariedade e da fraternidade que possa devolver-lhes a esperança e levá-los a retomar, com coragem, o caminho através dos problemas do nosso tempo e as novas perspectivas que este traz consigo e que Deus coloca nas nossas mãos.

Vaticano, 8 de Dezembro de 2014.
FRANCISCUS

sábado, 16 de novembro de 2013

XXXIII Domingo Comum C



Naquele tempo, comentavam alguns que o templo estava ornado com belas pedras e piedosas ofertas. Jesus disse-lhes: «Dias virão em que, de tudo o que estais a ver, não ficará pedra sobre pedra: tudo será destruído». Eles perguntaram-Lhe:
«Mestre, quando sucederá isto? Que sinal haverá de que está para acontecer?». Jesus respondeu: «Tende cuidado; não vos deixeis enganar, pois muitos virão em meu nome e dirão: ‘Sou eu’; e ainda: ‘O tempo está próximo’. Não os sigais. Quando ouvirdes falar de guerras e revoltas, não vos alarmeis: é preciso que estas coisas aconteçam primeiro, mas não será logo o fim». Disse-lhes ainda: «Há-de erguer-se povo contra povo e reino contra reino. Haverá grandes terramotos e, em diversos lugares, fomes e epidemias. Haverá fenómenos espantosos e grandes sinais no céu. Mas antes de tudo isto, deitar-vos-ão as mãos e hão-de perseguir-vos, entregando-vos às sinagogas e às prisões, conduzindo-vos à presença de reis e governadores, por causa do meu nome. Assim tereis ocasião de dar testemunho. Tende presente em vossos corações
que não deveis preparar a vossa defesa. Eu vos darei língua e sabedoria a que nenhum dos vossos adversários poderá resistir ou contradizer. Sereis entregues até pelos vossos pais, irmãos, parentes e amigos. Causarão a morte a alguns de vós e todos vos odiarão por causa do meu nome; mas nenhum cabelo da vossa cabeça se perderá. Pela vossa perseverança salvareis as vossas almas».

Caros amigos e amigas, à medida que nos aproximamos do fim do ano litúrgico, o Evangelho fala-nos do fim e convida-nos, através os sucessos e fracassos da vida, a viver hoje a primavera de Deus.

“Não ficará pedra sobre pedra”
Jesus não quer desprezar o orgulho dos judeus que viam na beleza e grandiosidade do templo de Jerusalém um sinal da presença de Deus. Convida antes os discípulos a não se iludirem perante o que parecia indestrutível e seguro: até as mais belas obras humanas são caducas e frágeis. Com Jesus caem por terra tantos deuses e templos, tantos modos de vida sem vida, abre-se uma convulsão e uma novidade na própria existência. O Mestre não quer discípulos distraídos, mas atentos ao que a história apresenta à nossa volta.
Muitas vezes o nosso olhar fica-se por aquilo que adorna a realidade, enquanto o olhar de Deus vai além das aparências e vê o significado mais profundo. As suas palavras obrigam-nos a abrir os olhos para ver as misérias do mundo, o sofrimento de tantos e a reconhecer as próprias contradições e dificuldades. Ser cristão não é fugir da história, nem significa não ter problemas para viver seguro numa bela torre imune aos males. Mas é estar com todos expostos às batalhas da vida.

Choque evangélico
Parece estranho que, para encorajar os discípulos, Jesus faça um longo elenco de calamidades e perseguições por causa da fé. A perspectiva de Jesus não é ingénua nem catastrófica. As guerras, os cataclismos… não são o sinal de um mundo tremendo que chega, mas são o indício de um mundo velho que, com dificuldade, se transforma. O evangelho não é o guia prático para o “fim do mundo”, mas o manual para a construção de um novo mundo.
O cristão deve estar presente nas noites escuras e nos combates da humanidade, segurando firmemente a lâmpada da esperança. Porque está confiante naquela misteriosa presença que é “língua e sabedoria” para enfrentar os obstáculos. Não tenhamos medo: perseverar é uma das faces do amor; é o rebordo silencioso da presença de Jesus. Todos os dias há que reconstruir o mundo e a esperança!

O protector de cada fragmento
Face a quem se angustia ou está intranquilo pelo futuro, encanta-me este Deus que cuida infinitamente do que é insignificante. Disposto até a contar os cabelos perdidos. Ele está enamorado do mais pequeno fragmento da pessoa amada porque nele abraça todo o seu mistério. Daí que só posso dar-lhe graças, porque mesmo no caos da terra e da história o seu olhar vê além das ruínas e das quedas: nada em mim é demasiado pequeno para o seu amor.
O Evangelho é um anúncio de graça e de bênção, pois o dia do Senhor amanheceu quando a noite de uma certa sexta-feira se iluminou com uma aurora sem fim e quando o sepulcro fechado se abriu a uma vida sem fim. Esta é, amigos e amigas, a luz esplendorosa do Evangelho!

VIVER A PALAVRA

Vou olhar o (meu) mundo como um espaço amado e salvo pelo Deus de toda a esperança.

REZAR A PALAVRA
Olha Senhor: as minhas fachadas caem a cada instante, o meu mundo é tão fugaz...
dá-me uma fé que acredite que o teu amor é eterno sobre cada pedaço de mim.
Reorganiza em mim, cada dia, a tua sabedoria que ama, a tua solicitude que salva.
Que saiba aprender de Ti a paciência que reergue e que nada deixa perder.
Quero colher, nos anúncios de morte, os traços da tua Cruz que soma sempre esperança!

Vem, Senhor do tempo, sopro de cada momento, ensinar-me a imergir na eternidade.

domingo, 31 de março de 2013

Domingo de Páscoa C




No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro e viu a pedra retirada do sepulcro. Correu então e foi ter com Simão Pedro e com o discípulo predilecto de Jesus e disse-lhes: «Levaram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde O puseram». Pedro partiu com o outro discípulo e foram ambos ao sepulcro. Corriam os dois juntos, mas o outro discípulo antecipou-se, correndo mais depressa do que Pedro, e chegou primeiro ao sepulcro. Debruçando-se, viu as ligaduras no chão, mas não entrou. Entretanto, chegou também Simão Pedro, que o seguira. Entrou no sepulcro e viu as ligaduras no chão e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus, não com as ligaduras, mas enrolado à parte. Entrou também o outro discípulo que chegara primeiro ao sepulcro: viu e acreditou. Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura, segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos.

Caros amigos e amigas, a Páscoa é o grande domingo, o dia da maior proclamação do coração da fé de toda a Igreja: Cristo ressuscitou, Aleluia! O texto do Evangelho de João coloca-nos em movimento no primeiro dia da semana, que é o dia da nova criação, da Páscoa definitiva.

A descoberta do sepulcro vazio
Madalena viu o sepulcro vazio e correu a dizer a Pedro e João. Eles correm ao sepulcro de Cristo vivo. A corrida exprime emoção e vontade de não perder tempo ou até medo que seja demasiado tarde. Os discípulos verificam os sinais e um deles acredita imediatamente. A ausência do corpo de Jesus do sepulcro podia explicar-se de outro modo, mas ele constitui um sinal essencial para os discípulos. A descoberta deste facto ambíguo foi, no entanto, o primeiro passo para o reconhecimento da ressurreição, que prepara as aparições da Páscoa e será interpretado por elas.
O Senhor ressuscitou verdadeiramente! – eis o grito da alegre esperança transformada em certeza nos tempos novos. Esta é a estafeta que os Apóstolos nos entregaram para a anunciar e testemunhar.

“Viu e acreditou”
Ver é considerado o sentido mais excelente e o que abre mais profundamente a realidade, por isso, o mais objectivo. O acreditar é de outra ordem. «Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos» (Saint-Exupéry). Os olhos capazes de ver são os olhos iluminados do coração. Acreditar é, com efeito, a certeza das realidades que não se vêem. É a adesão pessoal do coração na fé, considerando que alguém é verdadeiro. Jesus é a verdade, a vida e é na sua luz que vemos a luz.
A vigília da noite pascal, lugar do admirável combate da morte e da vida: «oh noite bendita, única a ter conhecimento do tempo e da hora em que Cristo ressuscitou do sepulcro» (Precónio pascal) abre-nos para a luz do dia sem ocaso. O círio pascal, símbolo eloquente do Senhor, foi novamente aceso e a sua luz difundiu-se na noite que brilha como o dia, cuja escuridão é clara como a luz.
Caros amigos, o discípulo viu o sudário e a mortalha e acreditou na glória do ressuscitado. Deixemos também abrir os olhos do nosso coração, como o do discípulo que viu e acreditou, abram-se os nossos espíritos à compreensão das Escrituras.

Cristo, nossa Páscoa
Da sua Páscoa Ele faz jorrar a vida. Sem a presença viva do Senhor, iniciada com a Páscoa, não podia existir a Igreja. O ressuscitado faz da nossa vida uma festa contínua. Por isso, a liturgia da Igreja que nasceu da Páscoa está inundada pela admiração, exultação e alegria, conforme os textos deste dia solene do ‘sacramento pascal’: «nasceu o Sol da Páscoa gloriosa, ressoa pelo céu um canto novo, exulta de alegria a terra inteira». De facto, na cruz florida da Páscoa une-se plenamente o céu e a terra, o divino e o humano. É o zénite do Evangelho!

VIVER A PALAVRA
Quero encontrar na luz de cada manhã, a alegria de celebrar a minha vida na Vida de Jesus.


REZAR A PALAVRA
«Sol, lua, astros, montanhas, vales, altitudes, planícies, nascentes,
lagos, mares, tudo o que voa, nada, rasteja,
com todas as vossas vozes erguei cânticos à glória de Cristo.
Hoje o Redentor do mundo regressa vencedor do inferno.
Ó autor de todas as coisas, rogamos-te,
nesta alegria pascal, que defendas o teu povo contra todos os ataques da morte.
Glória a ti, ó Senhor, que ressuscitaste dos mortos
e glória ao Pai e ao Espírito Santo por todos os séculos» (Liturgia Ambrosiana)

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

DIA MUNDIAL DA PAZ

DA MENSAGEM DE SUA SANTIDADE
BENTO XVI
PARA A CELEBRAÇÃO DO
XLIV DIA MUNDIAL DA PAZ
1 DE JANEIRO DE 2011

LIBERDADE RELIGIOSA, CAMINHO PARA A PAZ

É doloroso constatar que, em algumas regiões do mundo, não é possível professar e exprimir livremente a própria religião sem pôr em risco a vida e a liberdade pessoal.

Negar ou limitar arbitrariamente esta liberdade significa cultivar uma visão redutiva da pessoa humana; obscurecer a função pública da religião significa gerar uma sociedade injusta, porque esta seria desproporcionada à verdadeira natureza da pessoa; isto significa tornar impossível a afirmação de uma paz autêntica e duradoura para toda a família humana.

Por isso, exorto os homens e mulheres de boa vontade a renovarem o seu compromisso pela construção de um mundo onde todos sejam livres para professar a sua própria religião ou a sua fé e viver o seu amor a Deus com todo o coração, toda a alma e toda a mente (cf. Mt 22, 37).

Toda a pessoa é titular do direito sagrado a uma vida íntegra, mesmo do ponto de vista espiritual. Sem o reconhecimento do próprio ser espiritual, sem a abertura ao transcendente, a pessoa humana retrai-se sobre si mesma, não consegue encontrar resposta para as perguntas do seu coração sobre o sentido da vida e dotar-se de valores e princípios éticos duradouros, nem consegue sequer experimentar uma liberdade autêntica e desenvolver uma sociedade justa.

A liberdade religiosa deve ser entendida não só como imunidade da coacção mas também, e antes ainda, como capacidade de organizar as próprias opções segundo a verdade.
Uma liberdade hostil ou indiferente a Deus acaba por se negar a si mesma e não garante o pleno respeito do outro. É inconcebível que os crentes «tenham de suprimir uma parte de si mesmos – a sua fé – para serem cidadãos activos; nunca deveria ser necessário renegar a Deus, para se poder gozar dos próprios direitos».

Se a liberdade religiosa é caminho para a paz, a educação religiosa é estrada privilegiada para habilitar as novas gerações a reconhecerem no outro o seu próprio irmão e a sua própria irmã, com quem caminhar juntos e colaborar para que todos se sintam membros vivos de uma mesma família humana, da qual ninguém deve ser excluído.

A família é a primeira escola de formação e de crescimento social, cultural, moral e espiritual dos filhos, que deveriam encontrar sempre no pai e na mãe as primeiras testemunhas de uma vida orientada para a busca da verdade e para o amor de Deus. Os próprios pais deveriam ser sempre livres para transmitir, sem constrições e responsavelmente, o próprio património de fé, de valores e de cultura aos filhos.

Embora movendo-se a partir da esfera pessoal, a liberdade religiosa – como qualquer outra liberdade – realiza-se na relação com os outros. Uma liberdade sem relação não é liberdade perfeita. Também a liberdade religiosa não se esgota na dimensão individual, mas realiza-se na própria comunidade e na sociedade, coerentemente com o ser relacional da pessoa e com a natureza pública da religião.

O fanatismo, o fundamentalismo, as práticas contrárias à dignidade humana não se podem jamais justificar, e menos ainda o podem ser se realizadas em nome da religião. A profissão de uma religião não pode ser instrumentalizada, nem imposta pela força.

A busca sincera de Deus levou a um respeito maior da dignidade do homem. As comunidades cristãs, com o seu património de valores e princípios, contribuíram imenso para a tomada de consciência das pessoas e dos povos a respeito da sua própria identidade e dignidade, bem como para a conquista de instituições democráticas e para a afirmação dos direitos do homem e seus correlativos deveres.
Também hoje, numa sociedade cada vez mais globalizada, os cristãos são chamados a oferecer a sua preciosa contribuição para o árduo e exaltante compromisso em prol da justiça, do desenvolvimento humano integral e do recto ordenamento das realidades humanas.

A mesma determinação, com que são condenadas todas as formas de fanatismo e de fundamentalismo religioso, deve animar também a oposição a todas as formas de hostilidade contra a religião, que limitam o papel público dos crentes na vida civil e política.

No respeito da laicidade positiva das instituições estatais, a dimensão pública da religião deve ser sempre reconhecida. Para isso, um diálogo sadio entre as instituições civis e as religiosas é fundamental para o desenvolvimento integral da pessoa humana e da harmonia da sociedade.

A estrada indicada não é a do relativismo nem do sincretismo religioso. De facto, a Igreja «anuncia, e tem mesmo a obrigação de anunciar incessantemente Cristo, “caminho, verdade e vida” (Jo 14, 6), em quem os homens encontram a plenitude da vida religiosa e no qual Deus reconciliou consigo mesmo todas as coisas». Todavia isto não exclui o diálogo e a busca comum da verdade em diversos âmbitos vitais, porque, como diz uma expressão usada frequentemente por São Tomás de Aquino, «toda a verdade, independentemente de quem a diga, provém do Espírito Santo».

Em 2011, tem lugar o 25º aniversário da Jornada Mundial de Oração pela Paz, que o Venerável Papa João Paulo II convocou em Assis em 1986. Naquela ocasião, os líderes das grandes religiões do mundo deram testemunho da religião como sendo um factor de união e paz, e não de divisão e conflito. A recordação daquela experiência é motivo de esperança para um futuro onde todos os crentes se sintam e se tornem autenticamente obreiros de justiça e de paz.

A defesa da religião passa pela defesa dos direitos e liberdades das comunidades religiosas.

Dirijo-me, por fim, às comunidades cristãs que sofrem perseguições, discriminações, actos de violência e intolerância, particularmente na Ásia, na África, no Médio Oriente e de modo especial na Terra Santa, lugar escolhido e abençoado por Deus. Ao mesmo tempo que lhes renovo a expressão do meu afecto paterno e asseguro a minha oração, peço a todos os responsáveis que intervenham prontamente para pôr fim a toda a violência contra os cristãos que habitam naquelas regiões. Que os discípulos de Cristo não desanimem com as presentes adversidades, porque o testemunho do Evangelho é e será sempre sinal de contradição.

O nosso grito de dor seja sempre acompanhado pela fé, pela esperança e pelo testemunho do amor de Deus

O mundo tem necessidade de Deus; tem necessidade de valores éticos e espirituais, universais e compartilhados, e a religião pode oferecer uma contribuição preciosa na sua busca, para a construção de uma ordem social justa e pacífica a nível nacional e internacional.

A paz é um dom de Deus e, ao mesmo tempo, um projecto a realizar, nunca totalmente cumprido. Uma sociedade reconciliada com Deus está mais perto da paz, que não é simples ausência de guerra, nem mero fruto do predomínio militar ou económico, e menos ainda de astúcias enganadoras ou de hábeis manipulações. Pelo contrário, a paz é o resultado de um processo de purificação e elevação cultural, moral e espiritual de cada pessoa e povo, no qual a dignidade humana é plenamente respeitada.

Convido todos aqueles que desejam tornar-se obreiros de paz e sobretudo os jovens a prestarem ouvidos à própria voz interior, para encontrar em Deus a referência estável para a conquista de uma liberdade autêntica, a força inesgotável para orientar o mundo com um espírito novo, capaz de não repetir os erros do passado. É preciso, antes de mais nada, proporcionar à Paz outras armas, que não aquelas que se destinam a matar e a exterminar a humanidade.
Vaticano, 8 de Dezembro de 2010.

BENEDICTUS PP XVI