quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Entrevista no presépio

Maria deu à luz o seu filho primogénito, e O enfaixou
 e reclinou numa manjedoura,
porque não havia lugar para eles na hospedaria. Lc 2,



I. A manjedoura

Até agora experimentei o peso e a mentira da geada inclemente 
perturbada pelas indecisões da noite e o volume inquieto da atmosfera.
Agora é um calor novo, alvorecido nas entranhas da noite, que tão levemente me pesa!
No côncavo da minha disponibilidade recolhe-se o fruto de um ventre humilde,
para uma nova gestação da humildade.
Trago, da trepidação de todas as árvores, o odor do chão e o segredo dos passos,
os rugidos e os terramotos daquele solo onde esta vida se vai derramar
em anúncio de conforto aos atribulados, de esperança aos pobres, de júbilo aos tristes!
Seguro o sono de Quem mantém leve a minha vigília, tornei-me o trono da alegria!
Hoje todos os desanimados podem vir até mim, deixar o pranto e ressarcir-se na alegria.
Nesta meninice há uma erupção nova, progride um sabor que acariciará cansaços e deserções.
A artimanha que faz de qualquer leito um descanso, perdeu todo o sentido,
porque aqui tudo é expectativa, tudo é exultação, daqui todos os caminhos bebem metas!
Vinde, todos vós os que andais cansados e oprimidos pela ditadura da pressa
porque em mim descansa a urgência, vibra a suavidade e agiliza-se a leveza!

II. A palha

Recordava as montanhas de viço, alimentadas por raízes presas à terra
e depois a viagem da morte até vales de secura, na eira que me dilacerou.
Ainda trazia, na superfície tisnada, vestígios do sangue loiro ao corte da foice madura.
E agora vem este sol novo a mimar-me, embala-me esta brisa fresca, feita de choro tenro.
A mão de José aconchega-me ao tesouro que todos os cofres do mundo desejariam abraçar.
A flor voltou, a rainha do trigal, a espiga madura sob o esplendor perfeito!
Corre-me por dentro uma luz líquida, mesclada de um céu de topázio!
E retribuo um calor vegetal Àquele que é o brilho e o calor novos que nunca ousei sonhar…
Estava aqui disponível para alimento de animais e agora envolvo a alimentação dos tempos,
vida amassada, sob o céu do universo, que se fará pão e vinho
numa noite em que as estrelas serão olhos, rutilantes de assombro!
A preciosidade dos céus se faz banquete, aberto a todos os comensais do mundo,
a fina iguaria dos tempos desceu, na sua confecção de humanidade,
e eu sou a baixela real onde se requinta o doce manjar!
Vinde, todos vós cuja estiagem da vida secou e encontrareis a seiva que vos reanimará!


III. As faixas de linho

Já fomos glória da beleza da terra, a nossa flor azul dançava com o céu, sob a melodia do vento
e agora a beleza consumada adorna, como uma coroa, a glória da criação!
Já sofremos mil martírios e trazemos no corpo ressonâncias de gritos e sabor a lágrimas.
Trazemos o sabor das mãos que nos ungiram com a honra do suor,
que nos sujaram de terra e nos lavaram nos rios do mundo, com aroma de rosas,
que expurgaram as nossas impurezas e nos acertaram em mil emaranhados,
que deixaram escapar das suas gretas fios de sangue e ainda os preparativos da festa.
E hoje a festa é este corpo com que Maria nos envolve ao seu mistério.
A nossa substância herbácea aconchega-se à ternura com que Deus abraça o mundo!
Podemos prender e agasalhar o agasalho do tempo, que tudo liberta.
Hoje aceitamos o bordado de Deus na superfície acabrunhada do mundo,
esta peça nobilíssima, tecida com os pensamentos da misericórdia de Deus,
este esplendor da arte mais fina que se borda nas malhas da criação.
Vinde todos os que andais dispersos, trazei as vias intermináveis da vossa solidão
porque neste tear, Deus faz das vossas estradas os fios para urdir o invento da comunhão!

IV. O silêncio

Antes eu era apenas mutismo, a superfície monótona onde a novidade se esgotava,
agora abraça-me este murmúrio que não me ignora,
harmoniza-me esta melodia que não me atira para o lodo da mudez…
Agora vem este choro que me incorpora, que se afina com a minha liberdade.
Feito de sorriso, dou provimento a esta cumplicidade que não teria sustento em ruídos.
Estes olhos desmesurados, sobre a minha anatomia maleável, fazem-me manto:
tudo se acolhe à minha sombra, no meu miolo tudo se interpreta e se pondera,
o segredo de Deus transpira nos meus poros, e hoje dou a provar… a Palavra!
Os anjos estendem com segurança as asas: suporta-as a minha delicadeza inconsútil.
O âmago do meu vazio pode ferir-se com as chagas dos cânticos que filtram a noite.
Vinde todos vós os amordaçados pela indiferença, aqueles cuja audição entorpeceu:
eu sou a mesa onde a Palavra se reparte, alimentai nela a vossa comunicação.

V. A luz

Recordo-me como sou a primícia das obras de Deus, o primeiro fruto do seu “faça-se”,
hoje reeditada e consumada neste confronto decisivo com as trevas…
Aquelas quatro estrelas, cujo “faça-se” se acende neste corpo incandescente,
são também janelas de onde jorra a minha essência…
Não me lembrava de tão alto estado em que o meu esplendor tivesse brilhado,
na alternância dos dias e das noites, nos fogos siderais, nos incêndios do universo!
Farei um facho alto com a noite e guardarei dentro dela a força de todos os sóis…
Esta noite é o corpo que transporta a Luz, noite grávida de todos os dias que vierem.
Esta é a hora de polvilhar todas as obscuridades com a verdade,
é a hora de acordar os que dormiam sedados pelo conformismo!
Vinde todos vós que sois os habitantes das trevas e das sombras da morte,
vinde ver brilhar a Luz do mundo, acendei-vos na sua aurora!

Natal 2014
Ir. Maria José Oliveira

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