Maria deu à luz o seu filho primogénito, e O enfaixou
e reclinou numa manjedoura,
porque não havia lugar para eles na hospedaria. Lc 2,
I. A manjedoura
Até agora experimentei o peso e a mentira da geada
inclemente
perturbada pelas indecisões da noite e o volume inquieto
da atmosfera.
Agora é um calor novo, alvorecido nas entranhas da noite,
que tão levemente me pesa!
No côncavo da minha disponibilidade recolhe-se o fruto de
um ventre humilde,
para uma nova gestação da humildade.
Trago, da trepidação de todas as árvores, o odor do chão
e o segredo dos passos,
os rugidos e os terramotos daquele solo onde esta vida se
vai derramar
em anúncio de conforto aos atribulados, de esperança aos
pobres, de júbilo aos tristes!
Seguro o sono de Quem mantém leve a minha vigília,
tornei-me o trono da alegria!
Hoje todos os desanimados podem vir até mim, deixar o
pranto e ressarcir-se na alegria.
Nesta meninice há uma erupção nova, progride um sabor que
acariciará cansaços e deserções.
A artimanha que faz de qualquer leito um descanso, perdeu
todo o sentido,
porque aqui tudo é expectativa, tudo é exultação, daqui todos
os caminhos bebem metas!
Vinde, todos vós os que andais cansados e oprimidos pela
ditadura da pressa
porque em mim descansa a urgência, vibra a suavidade e agiliza-se
a leveza!
II. A palha
Recordava as montanhas de viço, alimentadas por raízes
presas à terra
e depois a viagem da morte até vales de secura, na eira
que me dilacerou.
Ainda trazia, na superfície tisnada, vestígios do sangue
loiro ao corte da foice madura.
E agora vem este sol novo a mimar-me, embala-me esta
brisa fresca, feita de choro tenro.
A mão de José aconchega-me ao tesouro que todos os cofres
do mundo desejariam abraçar.
A flor voltou, a rainha do trigal, a espiga madura sob o
esplendor perfeito!
Corre-me por dentro uma luz líquida, mesclada de um céu
de topázio!
E retribuo um calor vegetal Àquele que é o brilho e o
calor novos que nunca ousei sonhar…
Estava aqui disponível para alimento de animais e agora
envolvo a alimentação dos tempos,
vida amassada, sob o céu do universo, que se fará pão e
vinho
numa noite em que as estrelas serão olhos, rutilantes de
assombro!
A preciosidade dos céus se faz banquete, aberto a todos
os comensais do mundo,
a fina iguaria dos tempos desceu, na sua confecção de
humanidade,
e eu sou a baixela real onde se requinta o doce manjar!
Vinde, todos vós cuja estiagem da vida secou e
encontrareis a seiva que vos reanimará!
III. As faixas de linho
Já fomos glória da beleza da terra, a nossa flor azul
dançava com o céu, sob a melodia do vento
e agora a beleza consumada adorna, como uma coroa, a
glória da criação!
Já sofremos mil martírios e trazemos no corpo
ressonâncias de gritos e sabor a lágrimas.
Trazemos o sabor das mãos que nos ungiram com a honra do
suor,
que nos sujaram de terra e nos lavaram nos rios do mundo,
com aroma de rosas,
que expurgaram as nossas impurezas e nos acertaram em mil
emaranhados,
que deixaram escapar das suas gretas fios de sangue e
ainda os preparativos da festa.
E hoje a festa é este corpo com que Maria nos envolve ao
seu mistério.
A nossa substância herbácea aconchega-se à ternura com
que Deus abraça o mundo!
Podemos prender e agasalhar o agasalho do tempo, que tudo
liberta.
Hoje aceitamos o bordado de Deus na superfície
acabrunhada do mundo,
esta peça nobilíssima, tecida com os pensamentos da
misericórdia de Deus,
este esplendor da arte mais fina que se borda nas malhas
da criação.
Vinde todos os que andais dispersos, trazei as vias
intermináveis da vossa solidão
porque neste tear, Deus faz das vossas estradas os fios para
urdir o invento da comunhão!
IV. O silêncio
Antes eu era apenas mutismo, a superfície monótona onde a
novidade se esgotava,
agora abraça-me este murmúrio que não me ignora,
harmoniza-me esta melodia que não me atira para o lodo da
mudez…
Agora vem este choro que me incorpora, que se afina com a
minha liberdade.
Feito de sorriso, dou provimento a esta cumplicidade que
não teria sustento em ruídos.
Estes olhos desmesurados, sobre a minha anatomia maleável,
fazem-me manto:
tudo se acolhe à minha sombra, no meu miolo tudo se
interpreta e se pondera,
o segredo de Deus transpira nos meus poros, e hoje dou a
provar… a Palavra!
Os anjos estendem com segurança as asas: suporta-as a
minha delicadeza inconsútil.
O âmago do meu vazio pode ferir-se com as chagas dos
cânticos que filtram a noite.
Vinde todos vós os amordaçados pela indiferença, aqueles
cuja audição entorpeceu:
eu sou a mesa onde a Palavra se reparte, alimentai nela a
vossa comunicação.
V. A luz
Recordo-me como sou a primícia das obras de Deus, o
primeiro fruto do seu “faça-se”,
hoje reeditada e consumada neste confronto decisivo com
as trevas…
Aquelas quatro estrelas, cujo “faça-se” se acende neste
corpo incandescente,
são também janelas de onde jorra a minha essência…
Não me lembrava de tão alto estado em que o meu esplendor
tivesse brilhado,
na alternância dos dias e das noites, nos fogos siderais,
nos incêndios do universo!
Farei um facho alto com a noite e guardarei dentro dela a
força de todos os sóis…
Esta noite é o corpo que transporta a Luz, noite grávida
de todos os dias que vierem.
Esta é a hora de polvilhar todas as obscuridades com a
verdade,
é a hora de acordar os que dormiam sedados pelo
conformismo!
Vinde todos vós que sois os habitantes das trevas e das
sombras da morte,
vinde ver brilhar a Luz do mundo, acendei-vos na sua
aurora!
Natal 2014
Ir. Maria José Oliveira
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